terça-feira, 5 de agosto de 2014

Mulheres Rurais na Economia Solidária


Este artigo tratará da reflexão sobre os grupos produtivos de mulheres no âmbito da economia solidária. Terá como base o estudo sobre a participação das mulheres rurais e suas organizações na economia solidária no Brasil, feito a partir da sistematização dos dados cadastrados no primeiro Mapeamento Nacional da Economia Solidária que é parte do Sistema Nacional de Informações sobre a Economia Solidária (SIES). Essa sistematização foi coordenada por Luiz Inácio Gaiger e elaborada em conjunto com Élen Cristiane Salvador e Patrícia Kuyven. Foi utilizada a base nacional e dos 60 Territórios da Cidadania, criados em 2008, considerando os grupos com pelo menos uma sócia mulher.

Esse estudo faz parte das iniciativas da AEGRE/MDA (Assessoria Especial de Gênero Raça e Etnia do Ministério de Desenvolvimento Agrário) como parte das atividades do Programa de Organização Produtiva para Mulheres Rurais (POPMR). Esse programa foi criado em 2008 com o objetivo de fortalecer as organizações produtivas de trabalhadoras rurais, garantindo o acesso das mulheres às políticas publicas de apoio à produção e comercialização. Tem como um das prioridades realizar ações para identificar os grupos e redes produtivas de mulheres rurais, que visam localizar e reconhecer, quem são, onde estão e o que fazem as mulheres trabalhadoras rurais e suas organizações produtivas. Busca promover sua autonomia econômica e incentivar a troca de informações, conhecimentos técnicos, culturais, organizacionais, de gestão e de comercialização, valorizando os princípios da econômica feminista e solidária. Incorpora em suas diretrizes a promoção da igualdade de gênero, a economia feminista e solidária.

Mulheres no campo
A percepção e presença das mulheres no campo são marcadas pela divisão sexual do trabalho e pelas relações patriarcais. Isso fez prevalecer análises a partir do lugar das mulheres nas relações familiares, em geral focando no seu papel de mães, esposas e donas de casa.
As relações patriarcais no campo fazem com que a família seja compreendida como um todo homogêneo em que o homem representa os interesses do conjunto e detêm o poder de decisão. Dessa forma a partir da família se organiza uma hierarquia de gênero e geração centrada no poder dos homens sobre as mulheres e filhos (as).
Essas relações patriarcais se ancoram e são constitutivas de uma visão da economia e do trabalho restritos ao âmbito de mercado. Há uma redução do econômico ao que se realiza na chamada esfera produtiva, possui valor de troca e que pode ser mercantilizado e que é identificada como espaço masculino. Essa visão se ancora no discurso em que as mulheres são destinadas à esfera privada, como parte de um destino biológico vinculado à maternidade, reforça o não reconhecimento da produção doméstica e do papel econômico do trabalho das mulheres na família.
Essa realidade que é apresentada como fruto da natureza, na verdade é estruturada por uma relação social específica entre homens e mulheres que tem uma base material uma forma de divisão do trabalho que é a divisão sexual do trabalho. Segundo Daniele Kergoat a divisão sexual do trabalho se organiza a partir de dois princípios: da separação (trabalho de homem e trabalho de mulher) e hierarquização (o trabalho dos homens é mais valorizado). Disso decorrem práticas sociais distintas que atravessa todo o campo social. Ou seja, uma sociedade sexuada, estruturada transversalmente pelas relações de gênero. (Danièle Kergoat, 1996).

Essa formulação permite abordar a relação entre produção e reprodução, explica a simultaneidade das mulheres nas esferas produtiva e reprodutiva e sua exploração diferenciada no mundo produtivo e no trabalho assalariado Além do mais, o tipo de inserção econômica não altera em nada a sua responsabilidade quase exclusiva pelo trabalho doméstico e de cuidados. Para as mulheres a realização dessas atividades integra sua identidade primária, uma vez que a maternidade é considerada seu lugar principal. Introjetada profundamente pelas mulheres a sua vivência está marcada pela exigência de ser “uma boa mãe”, ser dócil, compreensiva, enfim saber cuidar. Na verdade esse discurso da boa mãe é uma construção ideológica que contribui para que as mulheres continuem aceitando fazer o trabalho doméstico como algo inerente ao ser mulher.

No campo essa divisão sexual do trabalho também se estrutura entre o que é realizado no âmbito da casa e no roçado. Dessa forma historicamente muitas das atividades produtivas realizadas pelas mulheres são consideradas extensão do trabalho doméstico. É importante ressaltar que essa modalidade da divisão sexual do trabalho no campo está vinculada à introdução da noção capitalista de trabalho, que justamente reduz trabalho ao que pode ser trocado no mercado.
Como decorrência houve historicamente a invisibilização e não reconhecimento do trabalho das mulheres, tanto do trabalho doméstico e para auto-consumo, como também daquele realizado no roçado. E com isso a negação de sua autonomia econômica, pessoal e política e a exclusão das decisões sobre a terra e o território. Essa foi a visão que até recentemente orientou as políticas em relação ao campo.
Outro dado analisado há muitos anos é a maior migração das mulheres para a cidade por falta de acesso a trabalho e renda. E muitas vezes também em busca de uma vida com menos imposição familiar e mais autonomia pessoal. Isso pode se refletir na busca por maior escolaridade, que ainda hoje é bem menor que as urbanas, mas que supera os homens do campo.
Essa situação começa a ter outros contornos a partir da forte organização das mulheres que tiveram alguns direitos reconhecidos a partir dos anos 90. A luta das mulheres no campo teve como um ponto fundamental o acesso a renda e para isso outros temas foram colocados tais como o direito à documentação, a reivindicação pelo reconhecimento das mulheres como sujeitos autônomos independentes, pois até então se reconhecia o homem como chefe representante dos interesses do conjunto da família.
No entanto as políticas continuaram não atendendo as demandas das mulheres rurais, mesmo quando elas tiveram participação ativa em suas reivindicações, como é exemplo do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF), criado em 1996. A exclusão persistiu mesmo depois do estabelecimento de um mínimo de 30% do crédito para as mulheres. (Butto e Hora, 2008)

A partir de 2003 houve mudanças em relação a esse quadro no âmbito do governo federal passam a existir várias iniciativas que atuam sobre essas questões, em diálogo com a pauta dos movimentos de mulheres no campo. Resultam desse esforço a criação de vários programas, a destinação de recursos específicos e também a constituição de uma institucionalidade que iniciou como um programa e avançou para a estruturação de uma diretoria. Alguns indicadores começam a se modificar, como, por exemplo, a ampliação de 31,5% dos rendimentos das mulheres em 2006 em relação a 2004. Mas ainda é muito forte a desigualdade no campo e um dos elementos que chama a atenção é como persiste a invisibilidade do trabalho das mulheres. Isso pode ser visto nos dados sobre a jornada de trabalho das mulheres na agropecuária que é quase metade dos homens. Isso leva a crer que há uma dificuldade de reconhecer sua jornada de trabalho uma vez que suas atividades de produção dos alimentos, tanto para o consumo como para o mercado, se misturam com os afazeres domésticos.

Economia Solidária
Para a análise dos grupos produtivos de mulheres na economia solidária é importante retomar alguns elementos em relação à economia solidária e a reflexão das relações com o feminismo.
Uma parte do debate e das ações que existem hoje na Economia Solidária se relacionam com iniciativas construídas a partir dos anos 90 no auge da implementação das políticas neoliberais no Brasil. Em uma realidade marcada por políticas de ajuste estrutural, modernização tecnológica, liberação das importações, diminuição de investimento público nas políticas sociais, a conseqüência gerada foi o desemprego estrutural. Uma das respostas a essa situação foi a criação de um conjunto de iniciativas de cooperativas e grupos de produção, comercialização e crédito. Em vários países da América Latina existiam grupos conhecidos como economia popular ou de geração de renda. Nesse processo se deu o debate em relação à economia solidária que resgatava a questão das cooperativas e da auto-gestão como parte da história de resistência dos trabalhadores europeus no século XIX. Houve um crescimento das articulações e debates, tanto em nível nacional, como em nível internacional e hoje é bastante consensual considerar como economia solidária essa gama de iniciativas.
Ao mesmo tempo, no período dos anos 90, nos marcos de uma hegemonia neoliberal, o Banco Mundial e outras instituições multilaterais apresentaram um leque de propostas baseadas nos valores neoliberais. Ou seja, proliferaram as propostas em termos de micro-crédito e empreendedorismo, como se a resposta ao desemprego fosse responsabilidade individual de cada cidadão (ã). Houve um extenso debate em torno necessidade de reconhecer o papel da economia informal e sua contribuição ao Produto Interno Bruto (PIB) e, portanto a importância de visibilizar esses dados. 

Nesse sentido a constituição de um campo que se posicionou como Economia Solidária foi extremamente importante por duas razões. A primeira é que deu uma resposta política a partir de uma visão crítica às propostas de empreendedorismo individual, competitivo, ancorado nos ativos individuais. Tornou-se um campo baseado na solidariedade, cooperação reciprocidade e de afirmação que é necessário construir práticas contra-hegemônicas a partir de outro paradigma. A segunda razão é que essa opção contribuiu para visibilizar em parte a economia realmente existente. Ou seja, desnaturalizou a visão de que a economia mercantil dominava todas as relações. Para Paul Singer, “A importância dessas experiências é o aprendizado que proporcionam a segmentos da classe trabalhadora de como assumir coletivamente a gestão de empreendimentos produtivos e operá-los segundo princípios democráticos e igualitários.”. (Paul Singer, 2000 pg 44).
Outro aspecto fundamental para o questionamento da economia hegemônica foi a luta contra o livre comercio no continente americano, em particular contra a implementação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). Nesse processo houve um profundo questionamento da extensão da mercantilização promovida pelo modelo neoliberal. Esse processo recolocou elementos de críticas à economia capitalista e da necessidade de construção de outro modelo econômico voltado para a garantia do bem estar e não do lucro. A economia camponesa, o papel da agricultura familiar e da agroecologia foram parte desse debate.

Economia Feminista e solidária
Em vários textos sobre economia solidária há uma crítica à visão limitada da economia hegemônica por considerar apenas o aspecto mercantil. No entanto essa crítica não rompeu com o traço androcêntrico predominante na economia dominante que não reconhece uma grande parte do trabalho de produção da vida a partir das tarefas domésticas e de cuidados. Dessa forma continua considerando essa dimensão como uma externalidade ao modelo econômico. Miriam Nobre (2003) recupera os estudos de Tily, Scott e Guérrin que contam a história das experiências de trabalhadoras inglesas e francesas no âmbito do cooperativismo europeu do século XIX. Elas estiveram em cooperativas de consumo, nas práticas associativas que tinham objetivos educativos e de dar respostas pragmáticas às necessidades dos mais pobres: tuberculose, moradias insalubres, analfabetismo. Esses estudos buscam justamente mostrar que não era um assunto só de homens.
O desafio que está colocado para a Economia Solidária é de que seja capaz de incorporar em seus princípios e pilares o compromisso com o questionamento da divisão sexual do trabalho e o reconhecimento do trabalho doméstico e de cuidados como a produção da vida. Além desse reconhecimento, tem o desafio de contribuir para que nas práticas cotidianas esse trabalho seja considerado uma responsabilidade coletiva e não uma atribuição específica das mulheres.
A Economia Feminista tem em comum com a Economia Solidária sua vocação contra-hegemônica, assim como uma visão mais ampla da economia para além do mercado. Isso se reflete em alguns princípios compartilhados como da solidariedade, da necessidade de redistribuição e reciprocidade. Porém, mesmo tendo esses pontos em comum, a economia solidária teve dificuldades para reconhecer e questionar a divisão sexual do trabalho. Dessa forma se constitui ainda um desafio o diálogo com a produção da economia feminista em relação ao questionamento do paradigma dominante da economia e sua abordagem androcêntrica. Isso foi fundamental para visibilizar a contribuição econômica das mulheres e enfocar o grande volume de trabalho doméstico e de cuidados, considerado parte do mundo dos afetos e não reconhecido como trabalho. Ao mesmo tempo, propõe que é necessário romper com a visão centrada no mercado e adotar uma proposta que tenha em conta a sustentabilidade da vida humana e seu bem-estar.

Dessa forma argumenta que a análise econômica deve incorporar tanto o âmbito produtivo como reprodutivo. O reconhecimento de que esses âmbitos se determinam mutuamente é que fará ver que a reprodução é também parte da economia (M. Leon, 2003). Na sociedade capitalista a esfera mercantil e salarial depende do trabalho doméstico e dos bens e serviços que aí se produz. A produção mercantil não é autônoma e depende do trabalho não remunerado nos lares. Nesse sentido há uma falsa autonomia dos homens que utilizam os bens e serviços realizados pelas mulheres. Para as mulheres significa um enorme volume de trabalho realizado pelas mulheres que não é reconhecido e ao mesmo tempo é determinante para a sua inserção no trabalho remunerado e suas possibilidades de autonomia econômica.

Analisar a realidade das mulheres a partir dessa perspectiva evidencia dois aspectos presentes na experiência de um grande número de mulheres. De um lado os limites em relação a autonomia econômica seja pelos baixos salários e empregos precários, pelo trabalho para auto-consumo, pela impossibilidade de uma inserção no mundo do trabalho com rendimentos. Mas também mostra a forte presença das mulheres nas práticas econômicas que estão fora da economia mercantil. Muitas dessas experiências construídas com base em relações de solidariedade e reciprocidade, mas em geral voltadas para o cuidado e as sutentabilidade da vida humana. Isso significa um enorme volume de trabalho realizado pelas mulheres que não é reconhecido e ao mesmo tempo é determinante para a sua inserção no trabalho remunerado e suas possibilidades de autonomia econômica. Por exemplo, são inúmeras a redes de vizinhança e/ou familiares que viabilizam diversos arranjos para que seja garantido que muitas mulheres possam conciliar trabalho assalariado com cuidado dos filhos.

Há um longo percurso a ser feito em relação ao conhecimento da realidade das mulheres e dos desafios para a garantia de sua autonomia econômica. Nesse sentido o estudo dos grupos produtivos de mulheres que constam no primeiro mapeamento da economia solidária no Brasil é um dos passos importantes nesse percurso.

Os grupos de mulheres rurais na economia solidária
O mapeamento da economia solidária realizado pela SENAES possibilitou um amplo levantamento de informações de 21.859 mil Empreendimentos de Economia Solidária (EES) em 2274 municípios em 27 Unidades da Federação. Esses empreendimentos têm 1.687.035 participantes, sendo 63% homens e 37% mulheres, dos quais 3875 grupos têm apenas sócias mulheres e 2053 são exclusivamente masculinos, 48% são rurais, 35% urbanos e 17% rurais e urbanos (www.mte.gov.br/economiasolidária).

O estudo sobre os grupos de mulheres, citado no inicio desse artigo, levantou os dados sobre a participação das mulheres em 60 Territórios da Cidadania (TC) e também em nível nacional. Os dados por sexo foram organizados em três categorias: grupos com 50% ou mais sócios que sócias, com 50% ou mais sócias do que sócios e exclusivamente de mulheres. Os dados mostram que não há diferenças significativas nas características dos grupos a partir do recorte nacional e dos Territórios da Cidadania. A diferenciação era dada pela dimensão de gênero, proporcional ao aumento de homens no grupo e, portanto as maiores diferenças estão entre os grupo com 50% ou mais de sócios homens e os grupos com sócias exclusivamente mulheres.

Em nível nacional foram levantados 774 grupos rurais com sócias exclusivamente mulheres num total de 9402 com pelo menos uma sócia mulher. Nos Territórios da Cidadania esses números são 267 empreendimentos em 3129. Apenas nas regiões Sul e Sudeste os grupos de mulheres alcançam 10% do total e é na região nordeste em que se encontram a maioria com 173. Concentram-se entre 6 a 15 sócias (43,4%), 16,5% tem de 1 a 5 sócias e 25,3% têm de 16 a 30 sócias.
Características dos grupos
Os grupos de mulheres são pequenos e também recentes, no período da pesquisa ainda estavam em processo de estruturação. Considerando as atividades coletivas predominante na maioria dos grupos é produção (88%), comercialização (70%), enquanto o uso coletivo de equipamentos e de infra-estrutura fica em quase 50% a obtenção coletiva de matéria prima cai para 35%.
Os grupos de mulheres começaram a crescer entre 1999-2001, sendo que 39% deles são do período de 2002-2004. Isso explica a utilização dos investimentos que prioritariamente são voltados para garantia da produção, que em primeiro lugar são em equipamentos, seguido de ampliação de estoque e só em terceiro lugar em infra-estrutura. São poucos os empreendimentos que tiveram acesso ao crédito, em torno de 11% e o valor do crédito acessado é pequeno. Mais de 50% buscaram e não conseguiram e mais de 75% afirmam ter necessidade de crédito.
A quase inexistência de acesso ao crédito tem como um dos determinantes a informalidade dos grupos quando 29% dos grupos responderam que a principal dificuldade é a falta de documentação. Além disso, são visíveis os limites das atuais políticas para responder as debilidades dos grupos de mulheres, pois as dificuldades seguintes se vinculam à questão da informalidade que são: falta de apoio para elaboração de projetos, taxas de juros incompatíveis com o empreendimento e burocracia dos agentes financeiros. Se somarmos essas quatro dificuldades correspondem a 73,6%. A dependência em relação a sede é outro elemento que mostra a fragilidade na estruturação pois utilizam espaços emprestados ou cedidos, que ocorre em um número maior do que os grupos mistos. Os dados deixam evidente que um dos elementos que contribui para a organização dos grupos de mulheres é o apoio e fomento que recebem de existem várias organizações como por exemplo em relação ao acesso a doação para iniciar a formação do grupo. Por um lado, isso demonstra que as mulheres têm menos recursos próprios, mas por outro lado indica um esforço de organização coletiva e da capacidade de articulação para estabelecer relações de parceria com as organizações que realizam essas doações. 
  A produção dos grupos de mulheres
Segundo os dados do mapeamento apenas 26% dos grupos de mulheres tem como produto ou serviços principal as atividades de produção agropecuária, extrativismo pesca. No entanto, há que aprofundar o conhecimento da produção, pois é muito provável atividades de processamento e que agregam valor aos produtos agrícolas terem sido classificadas como artesanato ou indústria e por isso sejam percebidas sem o elo da cadeia produtiva na classificação. Além disso, certamente combinam a produção agrícola com o artesanato e atividades de beneficiamento.
Mas mesmo com essa consideração, continua o desafio de que as mulheres possam ampliar sua participação na produção agrícola. Hoje sua participação tem uma forte concentração na produção destinada ao auto-consumo. E como essa produção em geral de hortaliças e pequenos animais se dá no quintal, muitas vezes até mesmo a renda obtida através da venda desses produtos também fica invisibilizada e em geral é utilizada para pequenas despesas correntes.
O acesso a renda
A renda média, em 2007 no período da realização do mapeamento, é muito baixa no valor de R$104,42, sendo que apenas 1,9% têm renda fixa e 56,6% por produto ou produtividade e 23 % não conseguem remunerar. Dos que têm renda 83,1% é até 50 % do salário mínimo.
Além dos elementos apontados acima do estágio inicial dos grupos, sua informalidade e dificuldade acesso ao crédito, outros elementos precisam ser mais investigados. Um primeiro é que o mapeamento não levantou o tempo disponível para o grupo produtivo. Uma análise do uso do tempo e em que tipos de atividades, permitiriam identificar a relação e ou co-existência com outras formas de produção como, por exemplo, oriundos da produção no quintal que é tão comum na realidade as mulheres do campo. Inclusive a renda que elas podem auferir, em geral vem desses produtos. Dificilmente acedem aos ganhos monetários vindos da comercialização dos produtos obtidos da plantação em conjunto com os cônjuges.

Os grupos de mulheres e a comercialização
De forma majoritária, as mulheres comercializam nas proximidades da residência em nível local e comunitário diretamente ao consumidor. A maioria (78,3%) tem alguma iniciativa que vise qualidade de vida das (os) consumidoras (os) e para isso buscam ofertar preços que facilitem o acesso aos produtos. Se consideramos os baixos rendimentos dos grupos de mulheres podemos inferir que essa iniciativa de ofertar preços baixos confirma o sentido solidário dessas iniciativas, mas ao mesmo tempo concorre para manter o atual nível de rendimentos.
Mas ainda é necessário investigar a relação os rendimentos dos grupos de mulheres e o volume de produção e comercialização. As mulheres estão em maior parte no artesanato e beneficiamento que certamente não são os produtos que demandam um consumo permanente ou pelo menos ocorre com menor freqüência que os produtos agropecuários e de pesca. Além disso, há que levar em conta que a comercialização ocorre principalmente em nível local. Para garantir um volume maior de comercialização é necessário aumentar e diversificar a produção e criar uma rede de comercialização ampla para além do âmbito local ou comunitário.
As dificuldades levantadas em relação à comercialização com maior freqüência é a escassa rede de compradores, falta de capital de giro para vendas a prazo e ausência transporte-estradas para escoar a produção.
Por outro lado chama a atenção que a comercialização em nível nacional, embora seja baixa, nos grupos de mulheres é o dobro dos mistos com 4,1%. Provavelmente está vinculado aos processos de articulação que os grupos estão envolvidos e as possibilidades de participação em eventos. Um dos indicadores para essa hipótese é que nos dados sobre espaço de comercialização 6,5% se dá em feiras e exposições eventuais.
A análise da produção, rendimento e comercialização mostra que grupos necessitam de um conjunto de condições para superar essas dificuldades e garantir maior autonomia econômica das mulheres.
Gestão e participação
Os grupos de mulheres têm uma gestão menos institucional baseada nas relações de proximidade e a participação coletiva na gestão reflete o tipo de empreendimentos que são informais e pequenos. A participação na gestão cotidiana alcança um percentual de 73,8%, sendo que 54,7% com periodicidade mensal. Apenas 1,9% não realizam assembléia geral. Quase metade (47,2%) dos grupos exclusivamente de mulheres participa de alguma rede ou fórum de articulação e 65,9% têm relação ou participa de movimentos sociais e populares e 50,9% participa ou desenvolve alguma ação social.
Pode-se observar uma diferença significativa na participação dos grupos de mulheres e dos mistos. Esses últimos têm maior participação dos que os de mulheres em fóruns mais institucionalizados o que se relaciona com a forma de organização do grupo, tais como: federação de cooperativas, movimento social, no caso sindical, e conselhos de gestão. Esta diferenciação reflete o tipo de organização mais formal (como cooperativas) e participação em espaços com características de representação. Os grupos de mulheres estão em fóruns que indicam que a forma de participação é mais horizontal e aberta.

Uma breve reflexão
A partir dos dados disponíveis e de debates realizados em vários espaços, inclusive de ações educativas com os grupos de mulheres podemos enumerar algumas reflexões iniciais. Nos debates com as mulheres é bastante apontada à necessidade de ampliar as informações e a formação para garantir um maior acesso as políticas públicas. Ou seja, há um reconhecimento de que há muito desconhecimento das políticas e programas disponíveis. Por isso para os grupos de mulheres ainda continua como uma demanda prioritária questões básicas como o acesso a documentação. Junto com isso expandir e disseminar informações sobre que políticas públicas e os recursos disponíveis para serem acessados.

Ainda é muito presente no cotidiano dos grupos de mulheres a visão de que há um longo percurso para que se construa uma maior autonomia e que possibilite as mulheres vencer os obstáculos para uma atuação no conjunto dos espaços da economia rural. Um desses limites é interferência do trabalho doméstico e de cuidados das crianças na sua disponibilidade para o trabalho produtivo e para a participação política. Mesmo sem ter no mapeamento os dados em relação ao trabalho doméstico os outros dados existentes sobre a jornada de trabalho das mulheres e o conhecimento a partir da percepção da experiência cotidiana indicam a centralidade desse tema. É possível afirmar que um desafio fundamental é colocar na agenda a necessidade de que o trabalho doméstico e de cuidados deve ser uma responsabilidade compartilhada. Portanto há que se buscar formas de socialização de uma parte desse trabalho e que ele seja assumido também pelos homens.
Mas também há limitações em função do padrão predominante destas relações familiares em que o marido muitas vezes restringe a participação delas. Além disso, ainda são muito presentes as dificuldades advindas da socialização de gênero como baixa auto-estima, insegurança e medo quando se refere às atividades na esfera pública. As questões de acesso ao crédito, comercialização, gestão, controle financeiro e administrativo ainda são muito identificadas como parte do mundo masculino, são percebidas como algo que elas não conseguirão manejar. Essa realidade remete a outra questão que é a necessidade de trabalhar para fortalecer a auto-estima das mulheres.

Ter um crédito em seu nome em geral faz com que as mulheres se sintam pressionadas pela necessidade de ter rendimentos suficientes recursos para a garantia do pagamento e com isso há um medo de endividamento. O fato de que a maioria dos grupos ainda não consegue ter renda fixa pode contribuir para a manutenção desses temores. Também há a dificuldade de saber se relacionar com os agentes financeiros agravadas pelos elementos da informalidade dos grupos e problemas cm relação à documentação, por exemplo. A organização de um modelo de gestão faz parte desses limites. É comum, por exemplo, que os grupos de mulheres não tenham um bom registro do que vendeu em uma feira e ao final não sabem exatamente qual o rendimento obtido e a quantidade de produtos vendidos.
O fato das mulheres combinarem a produção no quintal com a participação nos grupos de produção ainda não visibilizou esse trabalho e seu aporte econômico. Isso ocorre tanto em relação ao auto-consumo, mas também na própria renda auferida na comercialização da produção do quintal.

Responder esse desafio de visibilizar a contribuição econômica das mulheres é fundamental para ampliar o debate sobre trabalho que continua restrito àquele realizado na esfera mercantil e para questionar o traço androcêntrico (que parte da experiência masculina com a única referência) presente na discussão econômica, inclusive da economia solidária. Para alterar essa realidade é necessário recuperar e reconhecer as experiências e práticas das mulheres, a exemplo da grande contribuição da reflexão feminista na agro-ecologia que ao recuperar a experiência das mulheres trabalhou o conceito da produção do quintal e foi mais além ao mostrar a relação dessa produção com a construção da biodiversidade.
Há uma concentração das mulheres no artesanato e industrialização (beneficiamento) dos alimentos que se combina com a produção agrícola. Os desafios maiores estão concentrados no acesso ao crédito, comercialização e acesso a capacitação. Exige capital de giro, diversificação dos espaços de comercialização, aperfeiçoamento dos produtos. Além disso, é necessário rever a capacitação, pensar a ampliação dos produtos e agregar valor.
O mapeamento oferece um panorama geral sobre a situação e dinâmicas dos grupos, no entanto carece de mais dados sobre sua dinâmica de funcionamento que pudesse trazer mais elementos que ajude a indicar os desafios para o seu fortalecimento. Isso se concretiza na necessidade de conhecer o tempo disponível para o grupo e o tempo gasto no trabalho doméstico e de cuidados e também de explorar a relação da produção no grupo com outras atividades produtivas em particular no quintal.

A partir do que se pode conhecer nesse levantamento parece que há duas possibilidades para se construir mais elementos que contribuam para pensar estratégias para superação das fragilidades. Uma primeira seria aprofundar o conhecimento sobre alguns empreendimentos considerados exitosos para se buscar aprendizagens sobre que elementos garantiram esse processo. Outra possibilidade é aprofundar o conhecimento sobre alguns grupos mistos para entender que elementos estruturam as diferenças que são percebidas vinculadas a porcentagem de homens e mulheres sócios (as).
Mesmo diante da necessidade de se continuar investigando sobre os processos dos grupos temos como indicação geral que para fortalecer os grupos de mulheres e avançar em sua autonomia econômica implica em se ter um conjunto de políticas integradas em relação ao crédito, assistência técnica e comercialização.

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"Artigo publicado originalmente na publicação "Autonomia e cidadania: políticas de organização produtiva para as mulheres no meio rural", organizada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA).
+ Foto: Jovani Puntel/Acervo do Instituto Souza Cruz