quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Educação do campo e a concepção ética


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Introdução
O presente artigo trata de reflexões teóricas acerca da concepção ética de Henrique Dussel e de suas contribuições ao debate sobre educação do campo. O trabalho faz referência às críticas à ciência moderna feita por Dussel, o qual pontua suas discordâncias na forma de dominação que países europeus propuseram ao sistema global.
A organização eurocêntrica é criticada por Dussel (1994), por entender que essa visão retrata o mito da modernidade, uma vez que a pessoa humana é vista como culpada, excluída e fora do processo de globalização. Nesse contexto, a ética, defendida pelo autor, destaca a existência humana como direito fundamental de se viver em sociedade.
As reflexões do discurso ético Dusseliano nos levam a debater sobre a concepção de educação do campo, na perspectiva de pensar a realidade e a forma de exclusão social que os sujeitos ligados a terra enfrentam no decorrer da história, assim como a busca por uma educação pública de qualidade em seu próprio espaço de vivência.
A ética apresentada por Dussel proporciona reflexões críticas sobre as condições sócio-educacionais vividas pelas pessoas que são afastadas do processo de globalização de maneira intencional, haja vista que as reivindicações das pessoas em favor dos seus direitos são enfrentadas como uma ameaça ao paradigma dominante. Diante disso, no contexto da educação do campo, aumentam os conflitos agrários e se distancia da esperada reforma agrária.
A partir desse pressuposto, Dussel (1995) nos apresenta como ponto de partida a Filosofia da Libertação para um estudo sobre a pessoa humana, uma vez que são consideradas excluídas e afetadas pelo capitalismo. Nesse sentido Dussel (1995, p. 46) destaca que:
Toma como ponto de partida uma realidade regional própria: a pobreza crescente da maioria da população latino-americana, a vigência de um capitalismo dependente, que transfere valores para o capitalismo central; a tomada de consciência da impossibilidade de uma filosofia autônoma dentro dessas circunstâncias, a existência de tipos de opressão que estão a exigir não apenas filosofia da “liberdade”, mas uma filosofia da “libertação” (em forma de ação, em forma de práxis, cujo ponto de partida é a opressão).
Segundo a filosofia da libertação, os povos que vivem marginalizados almejam uma vida digna de se viver com reconhecimento em sociedade, isto é, uma ética humana que lhe proporcione a libertação de um sistema opressor. As pessoas procuram se libertar da dominação que existe, principalmente, no aspecto cultural, político, econômico, educacional e social.
No sistema capitalista, a ética se mostra como autoritária e utilitarista, uma vez que evidencia comportamento discriminatório e preconceituoso da pessoa humana, tudo isso em favor da aparência desenvolvimentista, destinada aos países situados na periferia do sistema mundo, o que constitui a modernidade como uma falácia.
Historicamente, a educação do campo foi vinculada ao descaso e a precarização, porque com a modernização da economia, a maioria de homens e de mulheres se deslocava para as cidades com a esperança de conseguirem melhores condições de vida, porém, mostra a realidade brasileira que tal expectativa resultou em desemprego e aumento da pobreza.
Isso comprova que o sistema capitalista se apresenta excludente e possuem limitações, o que vem ao longo dos anos gerando lutas sociais e econômicas, entre camponeses e latifundiários, causando mortes e aumento da criminalidade no campo brasileiro.
Nessa abordagem, a educação do campo vem ser discutida como o lugar marcado pela diversidade sócio-cultural, étnico–racial e pela multiplicidade de saberes e conhecimentos que são organizados em diferentes estratégias de sustentabilidade, exigindo, portanto, do poder público, políticas públicas inclusivas, que tenham como ponto de partida as condições da vítima e do Outro, que vivem no campo, na maioria das vezes, esquecidos pelo processo de desenvolvimento e pela desvalorização da própria existência como pessoa humana.
Contribuições do pensamento Dusseliano ao debate sobre Educação do Campo
O pensamento e a teoria de Dussel, na perspectiva da Ética da Libertação, contribuem expressivamente na elaboração e no repensar os conceitos organizados acerca da educação do campo. Discorrer sobre uma temática que apresenta princípios e prima pela valorização dos sujeitos que moram, estudam, trabalham, constroem história e afirmam cultura em diversos lugares e espaços brasileiros, demanda certa compreensão para entender também a correlação de forças, onde esses movimentos estão inseridos.
A educação do campo tem sua base ontológica nos movimentos sociais, especificamente no Movimento Sem Terra (MST) e no Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), que organizados na conquista pela terra e por reforma agrária sempre reivindicam melhores qualidades de vida e uma educação, voltada para a realidade de homens, mulheres, crianças e jovens que moram e estudam no campo.
Esse debate se expandiu para além do MST e atualmente assume vários discursos, pois estão presentes diversas vozes: dos Movimentos Sociais, Universidades, Grupos de Pesquisas, agricultores, Secretarias Estaduais e Municipais de Educação e o MEC/SECADI. O Estado se faz presente nessa disputa, o que demonstra uma contradição, visto que as políticas direcionadas aos povos do campo decorrem de ações emergenciais e assistencialistas a qual muitas vezes têm dificuldade de atender a realidade de agricultores, ribeirinhos, indígenas, quilombola etc., visto que apresentam identidades singulares, necessitando urgentemente de políticas públicas voltadas para a inclusão social.
As reflexões da ética, no debate sobre educação do campo, nos remetem pensá-las como princípios, moral de existência da pessoal humana, por exemplo: historicamente, o MST contribuiu na afirmação desse movimento, porém foram marginalizados, excluídos e com direitos violados, sendo visto como coisas, como o Outro e a margem do reconhecimento e do respeito. Nesse sentido, Oliveira (2004, p. 103) complementa que “a ética da libertação para Dussel trata-se de uma ética cotidiana, desde e em favor das imensas maiorias da humanidade excluída da globalização, na presente normalidade histórica vigente”.
A ética defendida na perspectiva Dulsseliana fica a favor da maioria abandonada, recusada e eliminadas muitas vezes por atos violentos, resultando em alguns casos na morte de muitos trabalhadores. Essa fatalidade ocorre quando os movimentos sociais do campo não aceitam os discursos audaciosos de desrespeito, assumidos, em alguns casos, pelo poder público e pelos latifundiários. Desse modo, Oliveira (2004, p. 102) destaca que:
Dussel desconstrói o discurso ético hegemônico e socialmente excludente desenvolvendo um contradiscurso ético – libertador que tem como referência o outro (a vítima), negado, excluído, afetado em seus direitos fundamentais a vida. E com isso, possibilita a desconstrução de discurso e representações que negam da pessoa humana e a denúncia ético-política da exclusão social das diversas vítimas do sistema.
A dominação no sistema global foi marcada historicamente pela exploração e expansão da cultura europeia que tem seu ponto de partida em países, como: França Itália, Alemanha e Inglaterra que, em apropriação aos diversos territórios no mundo, promove formas de vida e de organização social, cultural e política, sendo divulgada para os demais países como a melhor e a mais desenvolvida.
Ao longo dos anos, os povos do campo foram obrigados a conviver com imposições de vida desvinculada da realidade social, tendo influência do capitalismo e da expansão da globalização. Em vista disso, a educação se desenvolveu vinculada ao descaso e a precariedade, pois a modernização da economia implicou em marginalização, desemprego, aumento da pobreza e da criminalidade nos países considerados periféricos.
No Brasil, a expansão europeia apesar de ocorrer por Portugal - país situado na “periferia do sistema mundo” (DUSSEL, 2007), não abdicou de adaptar sua estrutura social e política durante o processo de ocupação das “novas” terras. Um exemplo disso foi a concentração da terra instituída por meio da Sesmaria, a formalização da lei da terra em 1850 que determinava que esta devesse ser uma mercadoria, pois a única forma de ter o acesso legal a ela seria por meio da compra e venda.
A dependência política e social que o Brasil passou em sua história também foi marcante na construção político ideológica dos sujeitos que disputam território no campo brasileiro. Com base nessas reflexões, Souza (2006, p. 28) explica que:
Aspectos contraditórios na sociedade brasileira no contexto das relações sociais capitalistas no campo, permitindo visualizar a organização de processos de resistência sociais e políticas. [...] a grande propriedade ao lado das pequenas; a produção em grande escala ao lado daquelas para o consumo interno; as relações políticas patrimonialistas, um conjunto de características e contradições que possibilitam a compreensão das relações de poder (dominação) e subserviência, bem como os processos de resistência social e política tão presentes em nossa sociedade, ao lado dos processos expropriatórios e de exploração, também característicos em nossa sociedade.
Sobre essas afirmações, vale situar as contradições sociais, educacionais e políticas, assim como a luta histórica dos movimentos ligados a terra que tem início na colonização, mas se consolida no Brasil em1984 com o MST. Apresentar o MST como referência no debate sobre educação do campo, não significa limitá-lo ao mesmo, pois “[...] foram esses os espaços de gênese das políticas que começaram a construir a Educação do Campo” (FERNANDES, 2004), embora esse debate venha, nos últimos anos, ocupando outros espaços e experiências sociais.
O conceito de educação do campo primeiro tem suas terminologias explicadas por Caldart (2002, p. 26) e assimilada pelos movimentos sociais da seguinte maneira: “no campo o povo tem direito a ser educado no lugar onde vive. Do campo, o povo tem direito a uma educação pensada desde seu lugar e com sua participação, vinculada à sua cultura e às suas necessidades humanas e sociais”. Por conseguinte, esse conceito vem sendo incorporado nos diálogos e debates acerca das melhorias educacionais das escolas e da situação em que se encontram educadores e educandos do campo. Nesse sentido Arroyo (2004, p. 29) define que:
É preciso educar para o modelo de agricultura que inclui os excluídos, que amplia os postos de trabalho, que aumente as oportunidades do desenvolvimento das pessoas e das comunidades e que avança na produção e na produtividade centradas em uma vida digna para todos e respeitadoras dos limites, da natureza.
O autor trata a educação do campo de forma prioritária, acreditando na possibilidade de melhores condições educativas as crianças, jovens e adultos que historicamente foram vítimas do descaso e do preconceito. Muitos termos com denominação pejorativa os tratavam como atrasados por sobreviverem da terra e com formas de vida diversificadas, onde latifundiários ansiavam pelo desaparecimento destes.
Assim, pensar a educação, voltada para atender a realidade camponesa, deverá resgatar saberes, vivências e experiências dos sujeitos que necessitam de uma vida digna e valorativa.
O movimento Por Uma Educação Básica do Campo reivindica uma educação que de fato seja construída com os sujeitos que vivem suas realidades especificas, mas o que ocorre é uma inversão e desvalorização dos saberes presentes nas diversidades dos povos da terra, das águas e das florestas. A esse respeito Souza (2006, p. 52) comenta que “muitos dos conteúdos, metodologias e valores transmitidos na escola das cidades apenas discriminam os povos que não estão inseridos nas relações humanas que dão configurações as cidades”.
Essa afirmativa se fundamenta na concepção que foi destinada aos sujeitos do campo, convivendo durante décadas com a exclusão e descaso pelo sistema educacional brasileiro. A relação campo/cidade tem suas marcas no contexto urbano/rural, organização que permeou no país e expôs o conhecimento das escolas urbanas como sendo o mais adequado, desenvolvido e totalmente distante de atingir a diversidade sócio-cultural presente nas diversas regiões.
Essa estrutura tem suas raízes desde o período colonial, quando os europeus chegaram à América, não respeitaram e muito menos veneraram o modo de viver dos indígenas. Segundo isso, percebe-se que o princípio da ética e do direito foram violados, visto que os indígenas nem sequer tiveram o direito de viver como seres humanos.
Desse ponto de vista, Oliveira (2004, p.104) contribui afirmando que “ter a ética como critério de verdade prática e teórica, ou seja, a vida como condição de possibilidade para a ação e para a reflexão”, nesse princípio destaca-se que a valorização da vida e o direito de viver na sociedade são os pontos básicos para a afirmação da alteridade.
As conquistas dos direitos dos camponeses, junto aos movimentos sociais, encontra a concepção dos direitos e princípios éticos expressos nas legislações, especificamente na constituição brasileira e a materialização destes nas políticas públicas direcionadas para a diversidade e o respeito a diferença. Assim, Molina (2008, p. 29) apresenta que:
O respeito à diferença pressupõe, assim, a oferta de condições diferentes. O que, no limite, garante a igualdade de direitos. Vale ressaltar que a dialética da igualdade e da diversidade evidencia elementos básicos e comuns a todos os sujeitos sociais: a unidade na diversidade. Mas, também indica as diferenças entre o campo e a cidade sócio-histórica e uma matriz cultural diferentes, o que os faz demandantes de políticas específicas.
Nesse contexto, Dussel nos apresenta a ética da libertação que designa como uma “ética crítica que parte das vítimas da história” (VILLA, 2000, p. 277). Desse modo, a filosofia da libertação emana da possibilidade da afirmação da alteridade, daqueles tratados pela cultura dominante como recusado, oprimido e que possuem sua cultura suprimida. Com base nessas colocações, Molina (2008) enfatiza a importância da materialização dos direitos aos seres humanos que são expostos nas legislações brasileiras, devendo de fato ser colocado em prática na sociedade, por meio das políticas públicas. Por isso, MOLINA (2008, p. 29) reafirma que:
É a compreensão da ideia do direito a ter direito que fundamenta a ação dos movimentos sociais como demandantes do que está previsto na lei, mas não materializado na realidade social. Exatamente pelo fato de vivermos numa democracia, regime, instituição de direitos, que se fundamenta a legitimidade, a possibilidade da ação de virmos a materializar aqueles princípios que historicamente, como humanidade construímos, que são os direitos, ou seja, independem da classe social; situação socioeconômica; de vivermos no campo ou na cidade; de sermos brancos ou negros; não importa a questão racial, de classe, de sexo: o fato de sermos pessoa humana nos faz portadores desses direitos.
O direito à educação aos povos do campo, demanda disputar projetos de território, visto que nesse mesmo território, temos de um lado os defensores da agricultura familiar: trabalhadores, agricultores, ribeirinhos, camponeses etc. De outro, a expansão degradante do agronegócio, àqueles que transformam a terra em mercadoria, alimentam o mercado externo e fortalecem o poder do latifundiário, provocando, ainda mais, a desapropriação das terras e os conflitos agrários.
Nessa perspectiva, a educação não se constitui isolada, mas integrada aos aspectos da cultura, infraestrutura, trabalho, organização social, política, sustentabilidade e economia, com a perspectiva de obtenção de políticas públicas que ofereça qualidade social para os trabalhadores viverem de forma digna no campo.
A crítica a ciência moderna obteve fundamentação teórica na concepção ética de Enrique Dussel, na perspectiva de refletir sobre a vida da pessoa humana perante a hegemonia europeia a partir da expansão do sistema capitalista.
Historicamente, o surgimento da modernidade se restringiu a países considerados majoritários no processo de desenvolvimento, dentre eles, destacam-se: França, Inglaterra, Alemanha e Itália que durante décadas dividiram o poder e obtiveram domínio total diante dos países situados no hemisfério sul.
Essa forma de dominação é questionada por Dussel, ao expor justificativas filosóficas que rompem com a concepção cartesiana de pensar o conhecimento científico.
Em seus inscritos, Dussel redimensiona o paradigma exposto pela modernidade e apresenta dois paradigmas que convivem no sistema global. O primeiro é o eurocêntrico e o segundo é o paradigma mundial. Os países chamados pelo autor de periferia do sistema mundo estiveram sob domínio de outros que ele designa como centro.
Desse modo, a ética dusseliana trata de uma ética da libertação que olha e escuta os excluídos e marginalizados que, na maioria das vezes, são esquecidos na chamada globalização.
Nesse contexto, estão situados os povos do campo, vivente de realidades específica que necessitam de uma educação que se apresente de forma diversa e plural, atendendo homens e mulheres do campo, como sujeitos que constroem e que possuem história.
A educação do campo, tendo como referência as contribuições da ética dusseliana, destaca que a pessoa humana, primeiro deverá ter direito a vida, princípio fundamental para que possam ser considerados como sujeitos.
Por fim, as reflexões acerca da educação do campo mostram que os sujeitos ligados a terra são historicamente considerados excluídos do processo de desenvolvimento, porém persistem na exigência por políticas públicas que de fato respeitem a integridade social, cultural, educacional, política e econômica. Perante isso, os povos do campo assumem como compromisso ético a denúncia contra a impunidade e a marginalização enfrentada por eles na busca pela reforma agrária e por uma qualidade social que venha atender a diversidade vivida em cada lugar e território onde estão inseridos.
Referências bibliográficas
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DUSSEL, Enrique. Filosofia da libertação: crítica à ideologia da exclusão. São Paulo: Paulus, 1995.
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______. El encubrimiento del indio: 1492. Hacia El origen Del mito de La modernidad. Cambio XXI-Colegio Nacional de Ciencias Políticas, México, 1994.
FERNANDES, Bernardo Mançano. MST: formação e territorialização. São Paulo: Hucitec, 2004.
MOLINA, Mônica Castagna. A constitucionalidade e a justiciabilidade do direito à educação dos povos do campo. In: SANTOS, Clarice Aparecida dos. Educação do campo-políticas públicas-educação. Brasília: INCRA, MDA, 2008.
OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de. Saberes, imaginários e representações na educação especial: a problemática ética da “diferença” e da exclusão social. Petrópolis: Vozes, 2004.
SOUZA, Maria Antônia de. Educação do campo: propostas e práticas pedagógicas do MST. Petrópolis: Vozes, 2006.
VILLA, Mariano Moreno. Dicionário do pensamento contemporâneo. São Paulo: Paulus, 2000.
* Este artigo foi originalmente apresentado no 5º Encontro da Rede de Estudos Rurais, entre 3 e 6 de junho de 2012.
** Imagem: Programa Novos Rurais do Instituto Souza Cruz.