Overshoot Ecológico
A
maior urgência política da nossa época é conter a grave crise
ecológica. Essa grave crise, gestada no seio da ecologia, é fruto da
distorcida visão social do progresso que faz a humanidade correr
tresloucadamente em busca da satisfação ilimitada dos desejos materiais;
para isso, põe a roda da economia (atividade produtiva) para girar com
mais força e rapidez, expandindo a qualquer custo a máquina de produzir
suntuosidades. É a sociedade produzindo riquezas (produtos) além do
necessário, como bem disse Thorstein Veblen (1857-1929). O motivo? Para
que os indivíduos com mais poder de aquisição possam se distinguir uns
dos outros.
Essa sociedade de produção e de consumo, na verdade, de hiperprodução e hiperconsumo, produziu em escala mundial o overshoot ecológico
(transbordamento), ou seja, esgotou-se o estoque da natureza sob a
forma de biocapacidade – o montante de recursos que o planeta regenera a
cada ano – e o compara à demanda humana. Transbordou-se o montante
necessário para produzir todos os recursos vivos que consumimos e
absorver nossas emissões de dióxido de carbono.
Desde 1970, nossa pegada de carbono (quantidade de terra e
área marítima necessária para absorver todo o CO2 que emitimos) mais do
que duplicou. De acordo com o Living Planet Report 2010, a
humanidade usava em 2007 (último ano para o qual se têm dados) o
equivalente a um planeta e meio para suportar suas atividades.
E por que isso aconteceu? Porque a economia não respeita
(na verdade, ignora) os limites da natureza. A atividade econômica
produtiva (o sistema econômico que nada mais é que um subsistema da
natureza) ignora as fronteiras ecossistêmicas e obedece cegamente à
ordem que emana do mercado que “pede” mais crescimento com mais
produção.
Isso resulta na depredação dos vitais ecossistemas, no
aquecimento global, na erosão da biodiversidade, na degradação dos
recursos hídricos. Lamentavelmente, o sistema econômico não leva em
conta a premissa de que mais crescimento físico da atividade econômica
significa completo esgotamento de recursos da natureza; em outras
palavras, em aumento de entropia (degradação).
Não há como negar: aumento da produção econômica (mais
produtos) representa menos florestas, solo, água, ar, clima estável e,
no final, mais resíduos e poluição. Para se fazer um hambúrguer de 100
gramas são necessários 11 mil litros de água. A fabricação de um jeans
consome 8 mil litros de água e o equivalente a 32 quilos de recursos
naturais. Esse raciocínio é bem simples: a partir de certo tamanho da
economia, há mais custos (e perdas) socioambientais que benefícios (e
ganhos) oriundos da produção material.
Não por acaso, desde os anos 1960, o PIB mundial foi
simplesmente multiplicado por cinco; nos anos 2000, o produto bruto
mundial cresceu, em média, a um ritmo de 3,7% ao ano; entretanto, desde
os últimos 60 anos, a partir do pós-Segunda Grande Guerra, quando se
consolida a busca pelo crescimento econômico como paradigma supremo das
políticas governamentais, mais de 60% dos principais serviços
ecossistêmicos foram destruídos (transbordou) à exaustão.
Vale reiterar: esse “transbordamento” (overshoot)
deve ser creditado à estapafúrdia ideia de fazer a economia (um sistema
aberto dentro do ecossistema) crescer, entendendo, erroneamente, que
diante disso repousa a melhora substancial do padrão de vida das
populações.
Com isso, implica-se em mais poluição (a poluição dizima
1,5 milhão de pessoas ao ano ao redor do mundo), mais produção de lixo
(o mundo produz cerca de dois milhões de toneladas de lixo domiciliar
por dia; são cerca de 730 milhões de toneladas ao ano), considerável
perda de ecossistemas/biodiversidade, consumo exagerado de
matérias-primas não renováveis, mais e mais emissões de CO2 (se durante
os anos 1990 as emissões de CO2 aumentavam ao ritmo de 1,3% ao ano,
durante os anos 2000 esse ritmo subiu para 3,3% ao ano) e, claro, como
consequência, menos meio ambiente.
A perda de ecossistemas é gravíssima. Para ficarmos apenas
num único exemplo: o maior de todos os ecossistemas, os oceanos (mares e
oceanos representam 71% da superfície da Terra), estão em corrente
processo de esgotamento. O Fundo de Alimentação e Agricultura (FAO/ONU)
já declarou que em 2048 não poderemos tirar dos oceanos nenhum recurso
alimentar significativo. Mais de 90% dos estoques de peixes predadores
de grande dimensão, como o atum, peixe espada e o bacalhau já foram
capturados. Entre os anos 1950 e o momento presente, a pesca total em
águas abertas e abrigadas passou de 20 milhões para 95 milhões de
toneladas métricas.
Período “antropoceno”
As extinções de fauna e flora, fruto da ação antrópica, alcançou ritmo jamais visto no último século; razão essa que levou o Nobel de química, Paul Crutzen, a declarar que desde o final do século XVIII “entramos” no período “antropoceno”, ou seja, na era em que predomina a influência (agressão) humana sobre a biodiversidade. Por tudo isso é urgente à necessidade de reconstruir a sociedade (e, especialmente a maneira como a economia atua em sua relação com o meio natural) em torno de outros valores, longe da sanha consumista.
As extinções de fauna e flora, fruto da ação antrópica, alcançou ritmo jamais visto no último século; razão essa que levou o Nobel de química, Paul Crutzen, a declarar que desde o final do século XVIII “entramos” no período “antropoceno”, ou seja, na era em que predomina a influência (agressão) humana sobre a biodiversidade. Por tudo isso é urgente à necessidade de reconstruir a sociedade (e, especialmente a maneira como a economia atua em sua relação com o meio natural) em torno de outros valores, longe da sanha consumista.
Se pretendemos alcançar com eficiência a política da
sustentabilidade, obrigatoriamente o sistema econômico deverá passar
pela capacidade de atingir prosperidade sem crescimento. Uma vez
reconhecendo que a pressão humana sobre o sistema ecológico é expansiva e
dilapidadora, três fatores precisam ser contornados para essa
reconstrução acontecer satisfatoriamente: i) segurar o aumento
populacional (em 1900, a população mundial era de 1,5 bilhão de
habitantes. 85 anos depois, o planeta atingiu 5 bilhões de pessoas e, em
apenas 28 anos depois, o mundo “ganhou” mais 2 bilhões de habitantes);
ii) estancar o nível de consumo e, iii) reduzir o uso de novas
tecnologias voltadas exclusivamente ao aumento da produtividade do
trabalho – base de aceleração da economia.
Esse conjunto de fatores – em especial, os dois últimos -
passa por “encaixar” a atividade econômica dentro dos limites dos
ecossistemas. A economia não pode mais “funcionar” sob o paradigma do
crescimento. Tão importante quanto isso, é o fato da economia
neoclássica – fascinada pela ideia de equilíbrio e liturgicamente adepta
do dogma do crescimento – reconhecer aquilo que é mostrado com bastante
clareza pela segunda lei da termodinâmica (parte da física que estuda
as transformações energéticas) que o “circuito econômico” não funciona
no vazio, mas dentro da biosfera.
Urge “renovar a economia” substituindo a obsessão material,
privilegiando o elo social ao invés da satisfação individual, como bem
apontou Hervé Kempf. Por fim, cabe perguntar: seria isso mera utopia?
Não! Definitivamente, não. Utopia maior consiste em acreditar que
podemos continuar no caminho atual de exploração desenfreada dos
recursos naturais e que isso, num breve amanhã, não afetará os destinos
da humanidade.
+ Imagem: Paul Turgeon